quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Reflexões sobre "E agora, Nora?!" por René Piazentin

E Agora: Nora.

Depois de “Casa de Bonecas”, Ibsen foi considerado feminista por muitos. Amenizando a afirmação, digamos que tenha sido lido como feminista, ao menos nesta obra. Atravessar a porta de casa em direção ao “mundo lá fora”, para Nora, foi algo incrível, um caminhar de Neil Armstrong, um pequeno passo para uma mulher,mas um salto para a humanidade... E talvez a sensação de Nora fora de casa pela primeira vez, ao ouvir a porta que se fecha atrás de si, tenha sentido-se exatamente com o primeiro homem a andar sobre a Lua – aquele pequeno passo para além da porta já se configura como uma distância imponderável em relação à casa. A diferença é que o astronauta deseja voltar. Nora, deseja encontrar um outro caminho.

Entretanto, nas entrelinhas de “Casa de Bonecas” e da trajetória do próprio Ibsen como dramaturgo, poderíamos dizer com mais justiça que antes de um libelo em favor da mulher, o que Ibsen escreveu foi uma peça em favor da emancipação do ser humano, seja ele homem ou mulher. A escolha pela representação da opressão sofrida pela mulher me parece antes um meio que um fim – o feminismo ou uma possível leitura feminista está contida na problemática maior, que engloba várias instâncias da vida social.

“E Agora Nora” tem em “Casa de Bonecas” um ponto de partida. A figura emblemática de Nora ganha status de arquétipo contemporâneo, justamente por isso, arquétipo mutável: vai da sedução da streaper e da prostituta (universo da erotização “acessível”), idéia da mulher como objeto sexual “disponível”, até a sedução da modelo, onde a erotização da passarela é o da idealização (o “inacessível” da perfeição). Entre os dois extremos da sedução, vemos a dona de casa, a adolescente, a mulher masculinizada e outras tantas imagens em um caleidoscópio de situações e personas sugeridas.

Mas a mulher não é apenas sedução. Esta talvez seja a grande qualidade do espetáculo, pois aceita a tarefa inglória de passar pelos clichês do feminismo (e do “feminino”) para um questionamento em vários ângulos – especialmente o de dentro. Interessante perceber que não é apenas o olhar da sociedade (machista) que gera estes clichês: a própria mulher é mostrada como criadora potencial de clichês sobre si mesma e sobre a sua condição.

As três atrizes brincam com facetas possíveis deste feminino em graus diversos de exploração do componente da sedução. Mas justamente o momento em que revelam mais sua intimidade, numa semi-nudez, o corpo se despe (literal e metaforicamente) do elemento da sedução e torna-se apenas ausência de máscaras, melhor dizendo de rótulos.

A pergunta que dá título ao espetáculo poderia ser dirigida a qualquer mulher: depois de abandonar Helmer, depois de “queimar o sutiã”, de soltar o espartilho e trocá-lo por calças compridas, como reconstruir uma idéia de feminino onde a delicadeza e a fragilidade não se confundam com submissão e fraqueza?

Assim como a figura feminina sofre essas metamorfoses em cena, a estrutura do espetáculo também propõe transformações. Há momentos onde a linguagem apóia-se na técnica corporal ( a exemplo da boneca Barbie fisicalizada em “linha de produção” pelas atrizes); outros em que o tom de depoimento explicita a discussão a partir de um discurso articulado (feminista?); outros ainda onde as imagens nos conduzem à reflexão. A peça tem a grande qualidade de transitar na linha tênue do clichê, apropriar-se criticamente deles e brincar com isso. Mergulha nos estereótipos para discutir esse novo arquétipo feminino e nos ilumina a conclusão necessária: homens ou mulheres, como viver em plenitude e respeito a alteridade?


René Piazentin

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